Marcela era uma menina comum. Gostava de brincar de pega-pega na rua com os amigos. Com suas bonecas, criava histórias fantásticas de monstros espaciais e aventuras submarinas. Brincava de casinha, também, quando lhe apetecia. Comia arroz, feijão, carne moída e batata frita como se fosse a melhor iguaria do mundo. Sujava os joelhos das calças e levava bronca dos pais quando fazia algo errado.
Mas quando Marcela tinha seis anos, começou a desconfiar que algo em si mesma era incomum. Foi numa aula de Artes na escola. Muitos anos depois, Marcela ainda poderia se lembrar das risadas das outras crianças quando alguém - não se lembraria quem - gritou: "A Marcela lambe as tintas!".
E foi assim que nasceu Marcela-Lambe-Tintas. No início a alcunha a incomodava; por vezes voltava para casa aos prantos. Com o tempo, porém, Marcela-Lambe-Tintas passou a aceitar o apelido, e até gostar dele. O fato é que bem tentara parar com o hábito, mas a tentação era grande demais. Quando um dia lhe perguntaram por que é que cultivava esta mania, respondeu simplesmente: "Porque gosto do sabor das cores". "Do sabor das tintas", a corrigiram. "Não", respondeu, "do sabor das cores".
O sabor do azul é o que Marcela-Lambe-Tintas mais gostava. Diferente do ácido amarelo ou do exageradamente doce cor-de-rosa, o azul tinha um gosto suave mas intenso que muito lhe agradava.
Um dia resolveram dizer a Marcela-Lambe-Tintas que ela já não podia mais continuar com o hábito que tanto gostava. "É uma moça agora", disseram, "não fica bem uma moça lamber tintas".
Com muito esforço, Marcela-Lambe-Tintas parou de lamber tintas. As aulas de artes passaram a ser um martírio. Marcela - agora sem a alcunha - deixou de ser uma menina sorridente. A força que era obrigada a fazer para não cair em tentação a deixava exausta e Marcela não sentia mais prazer em muitas coisas na vida.
Talvez por isto o incidente que se seguiu deveria ter sido anunciado. Quando, já no colegial, a escola organizou uma excursão a um famoso museu de arte da cidade, Marcela sentiu o sinal de alerta dentro de si acender. Tentou argumentar com a professora, dizendo que não poderia participar do evento. "Bobagem", disse a professora, "Esta excursão é obrigatória para todos os alunos e valerá nota para o fim do semestre".
Ao se ver cercada daquelas obras, tantas tintas de tantas cores diferentes, Marcela não resistiu. Quando foi encontrada pelos seguranças do museu lambendo um quadro de Monet, seus pais finalmente foram aconselhados a procurar um psicólogo. Marcela, é claro, nunca mais pôde pôr os pés em um museu.
Após uma série de psicólogos que tentaram - sem sucesso - curar o hábito de Marcela, seus pais decidiram levá-la a uma psicóloga que tinha a má-fama de usar métodos "alternativos" no tratamento de seus pacientes e que sugeriu a Marcela que ela comprasse telas e tintas e passasse, ela mesma, a pintar.
"Esta mulher está louca", disseram. Porém, ao verem Marcela se tornar cada dia mais calada e triste, enfim seus pais resolveram aceitar. Separaram um cômodo na casa para que ela pudesse se dedicar à atividade. Quando Marcela foi levada pela primeira vez a seu novo quarto, um novo brilho acendeu em seus olhos e lá ela ficou trancada por três dias e duas noites. Ao fim do terceiro dia, seus pais aflitos abriram a porta. Lá estava Marcela-Lambe-Tintas, com cores espalhadas dos pés à cabeça e um enorme sorriso no rosto. Ao seu lado, o primeiro de uma série de quadros que Marcela viria a pintar. E em sua língua, nem mesmo uma única mancha de tinta.
1 comentários:
bom como sempre.Bjs.Tia Chris
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