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sábado, 4 de agosto de 2012

Um Dia de Gato

Foi num dia desses que acordei transformada em gato. Confesso que demorei, envolta ainda no meu próprio sono, a me perceber com quatro patas. Apenas quando estiquei aquelas que costumavam ser minhas mãos foi que notei algo estranho. Todo aquele pêlo marrom cobrindo meus braços… Aquilo não era normal.

Fechei os olhos novamente e esfreguei preguiçosamente os olhos. Já chega de sonhar, eu disse para mim mesma enquanto bocejava, é hora de acordar. Afastei os cobertores e me pus em pé ao lado da cama. Quando minhas antigas mãos tocaram o chão de forma natural, finalmente percebi que não estava sonhando.

Estranhamente calma, caminhei sobre minhas quatro patas almofadadas até o espelho do meu quarto. Um grande gato siamês de olhos azuis olhou de volta para mim. Senti um arrepio percorrer toda a minha nuca e descer por minhas patas enquanto um leve rugido saía da minha boca antes que eu conseguisse entender que aquele outro gato era na verdade eu mesma.

Um gato bastante bonito, devo admitir. Charmoso, elegante… Um verdadeiro membro da realeza. Olhei para baixo, para minhas novas patas, a fim de examiná-las. Garras afiadíssimas se escondiam em meus dedos, e tive a repentina sensação de ser uma máquina mortífera ambulante. Olhando novamente para o espelho, observei o resto do meu corpo. Uma espessa e ágil cauda erguia-se acima do meu corpo. Testei seus movimentos e me peguei pensando como poderia ter vivido tantos anos sem uma cauda.

De repente, um zunido. Minhas orelhas se movimentavam sem que eu tivesse realmente controle sobre elas, virando-se como radares em busca de um sinal. Então eu a vi. Uma mosca. A mais gorda, monstruosa, nojenta e apetitosa mosca que já havia visto. Imediatamente, pus-me de guarda. Abaixei-me sobre minhas patas, com minha cauda tremendo nervosamente de um lado para o outro. Ouvi barulhos estranhos escapando da minha boca, mas não dei muita atenção. Meus olhos atentos acompanhavam cada movimento de minha presa. Alheia às minhas intenções, a mosca voou ao redor de minha cabeça e se preparou para aquele que seria o último pouso de sua breve vida. Antes que eu pudesse muito bem saber o que havia acontecido, minhas patas se fecharam sobre suas asas e no instante seguinte ela descia pela minha garganta.

Eu havia comido uma mosca. Esse pensamento se apoderou de minha cabeça. Eu comera uma mosca nojenta, e sabe-se lá onde ela havia estado antes de parar no meu estômago. Por alguns momentos pensei que fosse vomitar. Mas uma vontade súbita de ir ao banheiro se apoderou de minha mente, e de repente eu tinha assuntos mais importantes para tratar.

Como hábito, me dirigi ao banheiro. Após analisar, percebi que não conseguiria utilizar o vaso sanitário. Como é que gatos vão ao banheiro, mesmo? Ah, sim, pensei, é claro. Bamboleando graciosamente em minhas quatro patas, me dirigi ao quintal.

Usar o banheiro ao ar livre e sem medo de ser vista pelos vizinhos foi uma sensação libertadora. Mas enterrar aquilo que eu havia acabado de fazer, mesmo que os instintos de gato pulsando nas minhas veias tenham se encarregado disso, foi oficialmente estranho.

Senti então meu estômago reclamar de fome. Embora ainda pudesse sentir a mosca sendo digerida, ela não era nem de perto suficiente para me saciar. Voltei para dentro de casa, rumo à cozinha.

Claro que eu sabia que não conseguiria cozinhar, estando naquela forma. Tentei abrir a porta da geladeira, mas só então entendi o valor dos tais famosos polegares opositores. Um pouco frustrada, sentei no chão da cozinha e passei a lamber meu pêlo.

Levei alguns segundos para perceber que eu estava, de fato, lambendo meu próprio corpo. Interrompi meu "banho" por alguns instantes, sentindo minha língua áspera cheia de pêlos. Pela primeira vez naquele dia, parei para me perguntar como diabos eu havia acordado naquela forma e como faria para voltar ao normal. Antes que pudesse encontrar a solução, meu olfato detectou um aroma peculiar vindo de cima do balcão.

Olhando para cima, não acreditei que seria capaz de pular aquela altura. O balcão era no mínimo quatro vezes mais alto do que eu. Imaginar que eu pudesse ser capaz de ir parar lá em cima com apenas um pulo era como me imaginar em minha forma original pulando para o telhado de uma casa.

Meu corpo felino, no entanto, parecia pensar diferente. Minhas patas traseiras se arquearam, enquanto minha cauda voltava a balançar. Sem saber exatamente o porquê, dei uma reboladinha. No momento seguinte, eu estava sobre o balcão.

Restos de uma deliciosa galinha que eu havia comido na noite anterior estavam sobre um prato. Sem pensar duas vezes, me pus a devorá-la. Aquela galinha estava ainda mais deliciosa do que eu me lembrava, mas minha pequena boca de gato me obrigou a comê-la devagar.

Enfim saciada, pulei de volta ao chão. Havia sido um dia cheio, pensei, e eu precisava tirar um cochilo. Procurando pela casa, enfim encontrei o lugar perfeito: o sol entrava pela janela e batia no canto da sala, bem debaixo de uma samambaia que ficava pendurada na parede. Desabei meu corpo ali, voltando a lamber meu próprio pêlo. Quando enfim me senti limpa, caí no sono.

Acordei não sei quantas horas depois, quando já não batia sol no canto onde eu estava. Ao abrir os olhos preguiçosamente, me deparei com um rosto olhando para o meu. De um susto, me levantei, batendo minha cabeça no vaso da samambaia. Aquele rosto humano começou a rir. Olhei para minhas quatro patas, mas elas já não eram peludas. Dedos, unhas, polegares opositores… Estava tudo ali. Voltei a olhar para aquele rosto familiar e finalmente o reconheci.

- Não tinha lugar melhor para você cochilar, não? - disse meu marido. Respondi com um sorriso. Não, não tinha.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Gosto do Azul

Marcela era uma menina comum. Gostava de brincar de pega-pega na rua com os amigos. Com suas bonecas, criava histórias fantásticas de monstros espaciais e aventuras submarinas. Brincava de casinha, também, quando lhe apetecia. Comia arroz, feijão, carne moída e batata frita como se fosse a melhor iguaria do mundo. Sujava os joelhos das calças e levava bronca dos pais quando fazia algo errado.

Mas quando Marcela tinha seis anos, começou a desconfiar que algo em si mesma era incomum. Foi numa aula de Artes na escola. Muitos anos depois, Marcela ainda poderia se lembrar das risadas das outras crianças quando alguém - não se lembraria quem - gritou: "A Marcela lambe as tintas!".

E foi assim que nasceu Marcela-Lambe-Tintas. No início a alcunha a incomodava; por vezes voltava para casa aos prantos. Com o tempo, porém, Marcela-Lambe-Tintas passou a aceitar o apelido, e até gostar dele. O fato é que bem tentara parar com o hábito, mas a tentação era grande demais. Quando um dia lhe perguntaram por que é que cultivava esta mania, respondeu simplesmente: "Porque gosto do sabor das cores". "Do sabor das tintas", a corrigiram. "Não", respondeu, "do sabor das cores".

O sabor do azul é o que Marcela-Lambe-Tintas mais gostava. Diferente do ácido amarelo ou do exageradamente doce cor-de-rosa, o azul tinha um gosto suave mas intenso que muito lhe agradava.

Um dia resolveram dizer a Marcela-Lambe-Tintas que ela já não podia mais continuar com o hábito que tanto gostava. "É uma moça agora", disseram, "não fica bem uma moça lamber tintas". 

Com muito esforço, Marcela-Lambe-Tintas parou de lamber tintas. As aulas de artes passaram a ser um martírio. Marcela - agora sem a alcunha - deixou de ser uma menina sorridente. A força que era obrigada a fazer para não cair em tentação a deixava exausta e Marcela não sentia mais prazer em muitas coisas na vida.

Talvez por isto o incidente que se seguiu deveria ter sido anunciado. Quando, já no colegial, a escola organizou uma excursão a um famoso museu de arte da cidade, Marcela sentiu o sinal de alerta dentro de si acender. Tentou argumentar com a professora, dizendo que não poderia participar do evento. "Bobagem", disse a professora, "Esta excursão é obrigatória para todos os alunos e valerá nota para o fim do semestre". 

Ao se ver cercada daquelas obras, tantas tintas de tantas cores diferentes, Marcela não resistiu. Quando foi encontrada pelos seguranças do museu lambendo um quadro de Monet, seus pais finalmente foram aconselhados a procurar um psicólogo. Marcela, é claro, nunca mais pôde pôr os pés em um museu.

Após uma série de psicólogos que tentaram - sem sucesso - curar o hábito de Marcela, seus pais decidiram levá-la a uma psicóloga que tinha a má-fama de usar métodos "alternativos" no tratamento de seus pacientes e que sugeriu a Marcela que ela comprasse telas e tintas e passasse, ela mesma, a pintar.

"Esta mulher está louca", disseram. Porém, ao verem Marcela se tornar cada dia mais calada e triste, enfim seus pais resolveram aceitar. Separaram um cômodo na casa para que ela pudesse se dedicar à atividade. Quando Marcela foi levada pela primeira vez a seu novo quarto, um novo brilho acendeu em seus olhos e lá ela ficou trancada por três dias e duas noites. Ao fim do terceiro dia, seus pais aflitos abriram a porta. Lá estava Marcela-Lambe-Tintas, com cores espalhadas dos pés à cabeça e um enorme sorriso no rosto. Ao seu lado, o primeiro de uma série de quadros que Marcela viria a pintar. E em sua língua, nem mesmo uma única mancha de tinta.

domingo, 20 de maio de 2012

42

Artur Dente acordou naquela manhã com uma dorzinha chata do lado esquerdo da cabeça. Depois de rolar de um lado para o outro da cama por um bom tempo, decidiu parar de fingir para si mesmo que ainda estava dormindo e se levantar. Jogou as pernas para fora da cama, na esperança de que elas fossem sozinhas resolver os problemas daquele dia e deixá-lo hibernar. Ao enfim convencer-se de que não teria sucesso, enfiou os pés nos chinelos felpudos, vestiu a primeira peça de roupa que encontrou pela frente - um roupão verde-musgo jogado sobre a cadeira ao lado da cama - e se arrastou para o banheiro.

Ao se olhar no espelho, confirmou suas suspeitas: estava um bagaço. O cabelo levemente arruivado parecia haver pensado ser uma boa idéia dar uma festa durante a noite e convidar todos os fios para dançarem na mesma pista de música eletrônica. Lavando o rosto, Artur Dente desconfiou que sua baba também tivesse sido convidada para a festa.

Após considerar a hipótese de tomar um banho, Artur Dente lembrou-se de que era domingo e, como é sabido em todas as galáxias conhecidas, domingo é o dia oficial em que nada acontece e, portanto, não havia razão alguma para tomar um banho. Enxugou o rosto na toalha mais próxima e saiu do banheiro.

A dorzinha chata do lado esquerdo da cabeça continuava. Era a última vez, pensou, que sairia com aquele ator maluco que só o arrastava para lugares cheios de bebidas com alto ou altíssimo teor alcoólico. Seu organismo não fora criado para aquilo, pensava. Tudo o que Artur Dente mais queria naquele momento era uma boa xícara de chá.

Remexendo a terceira gaveta debaixo da pia da cozinha em busca de uma aspirina, um remédio para ressaca ou um vidro de veneno de rato - o que encontrasse primeiro -, Artur Dente pôs a água do chá para ferver.

De dentro do quarto veio uma voz estridente e manhosa. Sem conseguir encontrar a maldita aspirina, Artur Dente praguejou enquanto fechava a gaveta e abria a geladeira. Apenas um pote velho de manteiga, uma caixa de leite e uma bandeja quase inteira de iogurte passado da validade que Artur Dente comprara em um daqueles momentos em que decidia mudar de vida e começar a ter hábitos saudáveis. Pegou a caixa de leite e fechou a geladeira.

"Aqui, Marvin. Seu café da manhã.", disse Artur Dente. De dentro do quarto veio novamente a voz estridente e manhosa. Em poucos segundos, Marvin, o gato, saía do quarto e cheirava seu pote cheio de leite, pensando há quantos dias aquela caixa estaria aberta. 

A chaleira apitou no fogão, avisando que a água fervera. Artur Dente colocou um daqueles saquinhos dentro de uma xícara e serviu a água quente em cima. Agora só precisaria esperar alguns minutos enquanto fazia de conta que lia o jornal roubado do gramado do vizinho no dia anterior.

Antes que o chá pudesse ficar pronto, no entanto, a Terra foi destruída pelos Vogons para a construção de uma via espacial e Artur Dente não teve tempo de provar um dos 42 deliciosos sabores de chá que sua tia havia trazido de sua última viagem para a Inglaterra.